1 Artigo publicado nos Anais do VII Seminário Internacional de Alfabetização e Educação Científica, Ed. UNIJUÍ, ano 2000, p.35-44.
2 MARASCHIN, 1995.
3 Este conceito é trabalhado pela orientanda Simone Rickes em sua dissertação de mestrado “Autoria e produção
textual” PPGEDU/UFRGS, 1997.
4 (Bateson, 1991)
Cleci Maraschin
A temática dessa conferência, revisitando os estudos feitos por ocasião de meu doutorado2, visa propor que existem diferentes modos de exercitar aquilo que estamos chamando de função autor3 de acordo com a ecologia cognitiva4 -predominante- na qual estamos inseridos.
A função autor é aqui tomada como a possibilidade de produzir uma diferença em uma rede de sentidos, ou seja, o autor definirá a si mesmo pela diferença que produz. Definição de si como processualidade, não tendo um caráter definitivo, finito, mas que se relança a cada passo. Tomada essa definição fica explícito que a função autor se constitui e se reatualiza na
interseção dos agenciamentos sociais - que chamamos de instituições - e das tecnologias que configuram as redes de sentido. Caberia então pensar que a possibilidade de produzir efeitos de diferença em uma rede - função autor - também é condicionada pela ecologia cognitiva predominante. A função autor é redesenhada, ressignificada, implicando outras formas de agenciamento dependendo da ecologia cognitiva na qual é exercida. São essas as relações que pretendo repensar a seguir.
O aparecimento da escrita como tecnologia intelectual possibilitou o exercício da função autor diferentemente da maneira como era exercida na ecologia oral. Aliado a isso, após a institucionalização da escrita como conhecimento escolar, ela assume um valor socialmente paradigmático, e até mesmo quem não tinha nada a ver com ela, nem mesmo sabia de sua existência, passa a ser por ela definido como “analfabeto”, por exemplo. Os desdobramentos tecnológicos e sociais da escrita, principalmente os advindos das tecnologias digitais, reatualizam as condições para a emergência de novas posições subjetivas de autoria, principalmente exercícios de autoria coletiva.
Assistimos à transformação social do sentido atribuído à “alfabetização” para englobar a idéia de “letramento”, de pós-alfabetização, ou, ainda, alfabetização tecnológica. Esse
deslocamento não significa uma simples troca de palavras, mas revela a emergência de novas possibilidades de exercício de autoria, ou seja, uma bifurcação na possibilidade de produção de diferenças, relacionando, de uma maneira diversa, cognição e tecnologia; modificando as expectativas sociais de um contingente formado por esses novos leitores e escritores - internautas, co-autores; outrossim, redefine as possibilidades sociais e cognitivas dos chamados analfabetos funcionais, iletrados ou analfabetos tecnológicos.
Percorrendo a literatura, observa-se a existência de conceituações que organizam sentidos desse deslocamento ainda no que concerne a tecnologia escrita. Alguns autores propõem o nome de iletrismo (Foucambert, 1994), de analfabetismo secundário (Viñao, 1993), como também de analfabetismo funcional (Cook-Gumperz, 1991)5 para falar de uma posição diferenciada em relação à escrita. Esse sintoma é observado, com perplexidade, em lugares onde se supunha existir uma cultura letrada: em sociedades onde a escolarização
atinge a quase totalidade da população, em grupos sociais que freqüentaram alguns anos
escolares. A subjetividade iletrada apresenta como traços mais característicos, segundo Viñao (1993), a dificuldade de articular um discurso, seja oral ou escrito, sério e coerente; uma temporalidade fugaz, que se traduz em uma memória prisioneira de um tempo presente,
imediato, sem conservação do passado ou antecipação do futuro; uma atenção muito curta e
dispersa; a impossibilidade de dar coerência e relevância seletiva a uma sobre-informação pobre, insignificante, trivial e contraditória; a insuportabilidade do silêncio (Ong, 1987); um consentimento não crítico aos produtos da indústria cultural, um consumismo passivo e irreflexivo; a carência de uma metalinguagem que facilite a análise de qualquer discurso; a predominância do imaginar sobre o pensar, um afastamento das redes sociais de escrita (Foucambert, op.cit.).
5 Foucambert (1994) diferencia analfabetismo funcional de iletrismo. O analfabetismo funcional, para o autor, refere-se à perda do domínio das técnicas de correspondência grafo-fonéticas, decorrente da falta de exercício com as mesmas. Já o iletrismo se caracteriza pelo afastamento das redes de comunicação escrita, pela exclusão do indivíduo das preocupações e respostas, contidas na elaboração da coisa escrita.
Se, de um lado, o analfabetismo representa uma não-apropriação, um desconhecimento do código escrito – seja devido à predominância de uma cultura oral ou à exclusão do mundo das letras –, de outro lado, o iletrismo consiste num afastamento da prática da leitura e da escrita, das redes sociais de escrita e, podemos agregar, o “analfabetismo tecnológico” como significando um afastamento das redes sociais que se constituem a partir do acoplamento com máquinas de manipulação simbólica.
Aliado ao debate do diagnóstico dessa nova condição quase que patológica de exclusão das redes sócio-culturais de comunicação e informação, o cotidiano do trabalho dos professores também os defronta com alunos com diferentes formas de interação com a informação: se para os professores a leitura continua sendo a via privilegiada de acesso ao conhecimento, os jovens alunos parecem insistir em habitar outra ecologia fazendo ingressar nos muros escolares toda uma sorte de aparelhagens tecnológicas (desde os já quase desaparecidos “tamagochis” , walkman). Mesmo professores que trabalham com tecnologia sentem necessidade de interromper o acesso à internet, por exemplo, dos laboratórios de informática pois os alunos insistem na navegação ao invés de cumprir as tarefas propostas. A
questão a pensar é se esta fenomenologia evidencia uma dificuldade ou mesmo, da abdicação da função de autoria ou de um novo desenho de rede social, de diferentes modalidades de autoria. Ou seja, aquilo que podemos condenar como um acesso menos “nobre” ao conhecimento, poderia revelar-se na emergência de um território potencializador de criatividade, de exercício de autoria?
Uma primeira constatação possibilita admitir que as fontes de informação e os canais de comunicação podem estar abertos aos sujeitos sem que seja necessário se percorrer o caminho por etapas: primeiro o acesso ao código escrito, após os livros e finalmente às máquinas de manipulação simbólica. Ou seja, o exercício da função autor não depende necessariamente que o sujeito seja primeiramente alfabetizado por algum método fonológico,
após participe ativamente das redes sociais de leitura e escrita, para, finalmente, publicar sua própria página na internet. O que pode parecer um contra-senso tem sido observado em estudos feitos em países subdesenvolvidos, citados por Graff, (1995), tal como em Bangladesh, onde 48% dos analfabetos compram jornais que são lidos para eles, enquanto que os alfabetizados não praticam a leitura com uma significativa extensão. Assim, alfabetização, letramento e alfabetização tecnológica podem ser relativamente independentes. Ou melhor, um sujeito alfabetizado pode posicionar-se em relação ao objeto escrito de uma maneira iletrada, assim como um sujeito letrado pode não exercer a função autor nas redes telemáticas de informação e comunicação .
Em trabalho anterior (Maraschin, 1995) defendi a idéia de que a alfabetização- fonocêntrica escolar não se constituiria, necessariamente, em um etapa prévia do letramento, idéia essa que se opõe a um pensamento corrente no âmbito escolar de que a alfabetização estaria para a infância assim como o letramento para a idade adulta. Nesse caso, mesmo escolares que obtenham sucesso na alfabetização, não estariam imunes ao iletrismo. Ao contrário do esperado, a alfabetização escolar não implicaria, necessariamente, o letramento, sendo, portanto, falsa uma correspondência direta entre alfabetização e letramento. O que cabe agora apontar é se essa mesma relação pode ser pensada com referência à denominada alfabetização tecnológica.
6 Já possuímos alguns resultados de pesquisas que indicam que se pode fazer essa suposição. Tanto em minha dissertação de mestrado (Maraschin, 1987) quanto em experiências de oficinas de programação para crianças e
adolescentes com diferentes condições de aprendizagem (Maraschin, 1993) pude comprovar que crianças não alfabetizadas (seja pré-escolares ou repetentes) se alfabetizavam em interação com a Linguagem Logo de programação.
Ecologia cognitiva e exercício da função autor
A definição adotada de função autor implica a inclusão sócio/cultural; ou seja, a pertença ativa, propositiva, nas redes sócio/culturais. Também está em jogo um deixar-se capturar pelas redes de significações que deixam marcas específicas e abrem condições singulares para quem delas participa; a assunção de uma posição subjetiva proativa e diferenciada dentro da ecologia cognitiva predominante. A rede sócio-cultural é conceituada como uma ecologia cognitiva já que comporta as interações entre sujeitos, instituições e técnicas. A ecologia cognitiva constitui um espaço de agenciamentos, de pautas interativas, de
relações constitutivas, no qual se definem e redefinem as possibilidades cognitivas
individuais, institucionais e técnicas. É nesse espaço de agenciamentos que são conservadas
ou geradas modalidades de conhecer, formas de pensar, tecnologias e modos institucionais de
conhecimento. Um dos definidores de uma ecologia cognitiva consiste nas vias
informacionais aí privilegiadas. Vias que não somente suportam, possibilitam, mas que
também constituem, constróem as trocas informacionais, configuram redes iterativas e
definem as lógicas e práticas do conhecer. A via é um sistema heterogêneo e aberto,
constituída tanto por redes neurais, quanto pelas tecnologias, pelas instituições, como também
pelos sistemas simbólicos.
As redes sócio-culturais não são somente constituídas por sujeitos humanos. Para além
dos sujeitos e de suas ações, as técnicas de comunicação e de processamento e
amarzenamento de informação desempenham, nelas, um papel constitutivo. De acordo
com Lévy (1993), as tecnologias se transformam em tecnologias da inteligência, ao se
construírem como ferramentas que auxiliam e configuram o pensamento. Ao mesmo tempo,
tornam-se metáforas, servindo como instrumentos do raciocínio, que ampliam e transformam
as maneiras precedentes de pensar. Mas a partir de que formas operativas as tecnologias
intelectuais transformam e reconstituem a ecologia cognitiva? As tecnologias intelectuais
desfazem e refazem as ecologias cognitivas, contribuindo para fazer derivar as fundações
culturais que comandam a apreensão do real. Mas essa relação não pode ser pensada como
determinista: a técnica inclina, pesa, pode mesmo interditar. Mas não dita. (Lévy, op. cit. p.
186). As tecnologias agem na ecologia cognitiva sob duas formas: (a) transformam a
configuração da rede social de significação, cimentando novos agenciamentos, possibilitando
novas pautas interativas de representação e de leitura do mundo; (b) permitem construções
novas, constituindo-se em fonte de metáforas e analogias.
A palavra oral, a escrita, o mundo virtual são exemplos de tecnologias intelectuais: são
práticas sociais, na medida em que criam signos, possibilitam ou limitam modos de expressão
e intercâmbio, pautam as interações, constróem universos de sentido. Cada nova tecnologia
constrói um mundo de novas relações sígnicas, cada sistema semiótico abre novos caminhos
para o pensamento – um mundo, não só concreto, mas também mental, conceitual, implicando
modos diferenciados de exercício da função autor.
Função autor e ecologia oral
Podemos dizer que as redes sócio-culturais estruturadas a partir de uma ecologia
cognitiva oral, constróem vias informacionais que acoplam a estrutura biológica (sistema
nervoso, cérebro, sistema auditivo, fonador) e a linguagem resultante de uma organização
processual histórica/coletiva de combinações, articulação de sons e de produção de sentidos.
As redes sócio-culturais se conservam fundamentalmente pela capacidade de lembrar e de
memorizar de seus membros. A memorização das idéias produzidas oralmente privilegia a
audição como sentido e como fonte de conhecimento. A dificuldade de guardar os sons fez
com que fossem constituídas algumas técnicas -no sentido de tecnologias- e procedimentos
que ajudassem a memorização, e consequentemente a lembrança, pela retomada de sua
enunciação. Basicamente, pode-se pressupor que a cultura oral consiga manter uma certa
estabilidade através da repetição cíclica dos conhecimentos, ou saberes, os quais julga ser
necessário perpetuar. Mas os conhecimentos e saberes interessantes não são repetidos de
qualquer forma, eles se estruturam em modos variados, tais como as lendas, os mitos, os
contos, as canções, os provérbios, os clichês, etc.
Mas como se pensa uma autoria em uma ecologia onde existe a necessidade da
repetição cíclica dos conhecimentos e saberes? Como os contadores de história ou os
narradores de uma cultura oral poderiam exercer a função autor? Como produzir diferenças na
repetição? Alguns pesquisadores de culturas orais (Ong, 1987; Goody, 1993) mostram que os
contadores de histórias recorriam a um padrão temático ou formulário como uma estratégia
mneumônica para criar uma estrutura episódica. Estudos feitos por Parry, citados por Ong
(op. cit.) a respeitos dos primeiros textos escritos, que ainda mantinham uma estrutura oral,
permitem revelar algumas características do modo de relacionar as idéias num mundo oral.
Por exemplo, os versos da Ilíada e Odisséia mostram mais uma estruturação por meio de
fórmulas do que por meio de palavras. As fórmulas usam referências de todo genéricas, como
frases ou expressões típicas, repetidas mais ou menos exatamente (como provérbios), em
versos ou em prosa. O que os contadores de história lembram, não são as palavras, uma a
uma, mas sim as fórmulas: a fórmula da batalha, a do herói, a da princesa, etc. Esta tecnologia
de lembrança institui um pensamento formulário e “formulaico”, que em uma ecologia
cognitiva oral tem uma função inegavelmente mais decisiva e penetrante que qualquer que
seja a função que possa desempenhar em uma cultura que conheça a escrita, a imprensa ou a
informática.
A autoria dos contadores de história ocorre justamente no rearranjo das fórmulas, na
sua articulação com o contexto da experiência dos ouvintes, bem como na captação do estado
emocional da audiência. Assim a repetição, ou os ciclos, sofrem transformações, o que
implica uma conservação parcial das informações: “as genealogias dos vencedores tendem a
sobreviver (e a ser melhoradas); as dos derrotados podem desaparecer (ou recebem outro
tratamento)" (Ong, op. cit., p. 71). O fato de situar-se na posição de quem conta a história
marca o acesso a um lugar subjetivo específico que configura novas modalidades de relação
tanto com o outro – semelhantes quanto ao que é contado. Abrindo aí possibilidades de
produção de uma diferença.
Função autor e ecologia escrita
Em uma ecologia escrita, a estrutura física das vias informacionais é composta pelo
acoplamento dos sistemas biológicos com ferramentas tecnológicas - pedras, pergaminhos,
tintas, lápis, papel, tipos, máquinas. As redes sócio-cognitivas assim constituídas inauguram
uma situação prática de comunicação e interação radicalmente nova: os discursos podem ser
separados das circunstâncias particulares em que foram produzidos. O que cria condições de
agenciamentos não mais sincronizados no espaço e no tempo. Desde seu surgimento, a escrita
influenciou a oralidade, não no sentido de seu recrudescimento, nem de sua representação,
mas sim na possibilidade de sua tematização, conferindo-lhe visibilidade ao ser impressa em
diversos suportes.
A possibilidade de exercício de autoria nessas redes pressupõe maiores investimentos
subjetivos e sociais, nem sempre exitosos, no sentido de propiciar uma inserção ativa/autoral
nas redes sócio-culturais escritas. A escola, principal agente institucional formal, não tem
garantido essa ampla inserção.
A hipótese principal, da tese mencionada7, propõe que a escola constrói o que se
poderia chamar de uma ecologia cognitiva da escrita escolar que se caracteriza
fundamentalmente por conservar a alfabetização como uma metáfora da oralidade,
potencializando uma descontinuidade entre alfabetização e letramento. A institucionalização
social da alfabetização como uma prática quase exclusivamente escolar construiu um conjunto
de sentidos cristalizados, análogos a algumas características cognitivas privilegiadas em
culturas fundamentalmente orais: a ênfase na memorização, nos exercícios repetitivos, nas
fórmulas mnemônicas, na seqüência e hierarquização dos conteúdos, etc. Para exemplificar
esta relação, pode-se fazer uma analogia dessas características cognitivas da oralidade com
situações escolares. Comparemos uma passagem, retirada de uma conversa entre uma
professora e um escolar de Primeira Série, com a citação de Viñao (1993):
7 Ver nota de rodapé n. 2.
Yuri (7 anos) tenta escrever a palavra
balão, após ter escrito a letra “b” e a letra
“a” diz: “Só sei o „ba. de balão. Falta
mais letras para terminar”. -Professor:
“E bala?” -Yuri: “É o mesmo ba”. –
Professor: “Podes escrever?” -Yuri:
“Eu não me lembro”. – Professor: “E
aqui (abelha) o que está escrito?” -Yuri:
“Balão.” -Professor: “Onde estão as
letras?” -Yuri: “A, a ... b, b ... e, e, e ...
l, ... pera aí, abelha” -Professor: “Por
que mudaste de idéia?” -Yuri: “Eu me
lembrei que é assim que se escreve
abelha.”
Numa sociedade oral primária, quase
todo o edifício cultural está fundado
sobre as lembranças dos indivíduos. A
inteligência, nestas sociedades,
encontra-se muitas vezes identificada
com a memória, sobretudo com a
auditiva (Viñao, op. cit., p. 77, grifo
meu).
Por que na escola desaparecem as palavras “escrita” e “escritor”, sendo estas
substituídas por “alfabetização” e “alfabetizando”? Por que se relaciona imediatamente escrita
com escolarização, escrita com produção fonética, escrita como condição de aprendizagem,
escrita como prognóstico, escrita como habilidade? O fonocentrismo seria a principal
característica da ecologia cognitiva escolar da escrita: o fonocentrismo se materializa, na
escola, pela ênfase nos aspectos orais da escrita, pela centralização da informação na pessoa
do professor, pelos métodos que se fundam na fonetização, pela prevalência da escrita
alfabética, pela memorização de listas de palavras iniciadas pela mesma letra, pela recitação
das famílias silábicas e pelo ditado como principal modalidade avaliativa; enfim, por todas as
técnicas e exercícios que levaram a conceituar a escrita como uma transposição da fala. A
própria escrita numérica tem sido pensada, nesta ecologia, como uma decorrência da
aprendizagem da escrita alfabética, o que produz uma conceituação restritiva da escrita
numérica – apenas como representação da cardinalidade de uma coleção ou de um conjunto –
sem levar em conta a representação do sistema posicional.
Se nas primeiras séries escolares o exercício da função autor se encontra limitado,
conforme explicitado anteriormente, é interessante pensar como se produz em outros
momentos da vida escolar. Um estudo interessante neste sentido foi desenvolvido por
Rickes(1997)8 no qual a autora fornece um modelo de autoria de textos cujo objeto de
tematização é a experiência clínica de estagiários, acadêmicos do curso de Psicologia. A
autora denomina de “espaço de construção da escrita” o espaço de elaboração de um texto,
que é composto pela presença de alguns elementos que possibilitam que um autor tome forma.
O espaço, que engendra a constituição da autoria, possui o sentido de um lugar virtual, “algo
que ainda não se encontra atualizado, mas que, através de algumas operações, poderá se
inscrever, constituindo-se no berço que sustentará a escrita”. (p.138)
8 A pesquisa foi realizada com alunos do curso de graduação em psicologia que realizaram estágio de psicologia
clínica na Clinica de Atendimento Psicológico da UFRGS.
Ao examinar a situação de produção desse tipo de texto, aponta três elementos que se
fazem presentes de imediato: o sujeito empírico, aquele que escreve; o leitor empírico, aquele
que nomeadamente lerá o texto; e o fato empírico, aquele sobre o qual se debruçará o escrito.
São, portanto, três elementos substancialmente localizáveis, especialmente os dois primeiros.
Porém, não serão exatamente eles que interagirão na construção do escrito, embora suas
presenças sejam fundamentais. O escritor empírico, o leitor empírico e o fato são categorias
que só adquirem operatividade na medida em que podem subjetivar-se através de operações
de transformação adentrando um espaço - subjetivo - onde se estabelecerão as relações
necessárias à construção de um texto por um sujeito autor.
Segundo a autora, o tema da escrita (que no caso pesquisado versava sobre a
experiência clínica) para adentrar ao espaço de construção do texto sofre operações
diferenciadas. Do ponto de vista cognitivo, “ tomar um fato como objeto de reflexão em um
texto implica incidir sobre ele uma operação que o lance a um outro patamar em que é
possível estabelecer outras operatividades sobre o mesmo, o que exige uma reconstrução do
próprio fato-objeto – agora descolado de sua realidade empírica – assim como do sujeito em
questão, de onde se infere pela presença do mecanismo de abstração reflexionante”. (p.140)
Por sua vez, do ponto de vista subjetivo é necessário fazer incidir sobre o fato
empírico uma operação de subjetivação, tomando-o como parte de algo em que o sujeito
esteja implicado e que tenha a ver com sua história. O sujeito deve investir no fato, situando-o
como algo que implique seu desejo.
O sujeito que escreve não o faz como um autor empírico, mas como um sujeito do
desejo. Segundo a autora, “ele mostra sua multiplicidade, sua não-substancialidade, quando se
situa em distintos lugares para falar, o que no texto se faz ver, por exemplo, pelo fato de
lançar mão de diferentes modos de conjugação do verbo, falando em um mesmo texto na
primeira e terceira pessoas do singular e na primeira pessoa do plural” (p.142).
Ao mesmo tempo, quando o sujeito se coloca como autor institui, no mesmo ato, o
leitor. Segundo a autora “a constituição desse lugar de endereçamento do texto é suportada,
por um lado, pela transferência que se tem com quem serão os leitores do texto, no que isso
implica uma suposição de saber a esses leitores, bem como um lugar que se faz encarnar,
lugar esse em íntima relação com experiências por si anteriormente vividas; por outro lado,
ela tem como suporte uma operação cognitiva de descentramento do ponto de vista que
permite ao autor tomar-se no lugar do leitor, concebendo-se como leitor do próprio texto,
para, desde aí, supor estratégias textuais que contribuam no sentido de que seu texto encontre
a interpretação que lhe desejaria, bem como, ainda do lado do cognitivo, a colocação em cena
de algo do processo de abstração reflexionante que permite lançar esse lugar de leitura a um
outro patamar que não o do leitor empírico ” (p.143).
“Temos, então, que o sujeito, o leitor e o fato empírico, bem como as referências
bibliográficas, que ingressam num campo virtual de construção do texto através de operações
que levam em conta, principalmente, do lado do sujeito do desejo, a transferência, e do lado
do sujeito cognitivo, o processo de abstração reflexionante e o descentramento” (p.146).
Estes elementos constituem um modelo básico desde onde se pode pensar a autoria.
No entanto, Rickes acrescenta outros elementos que individualizam ainda mais o processo de
elaboração da escrita, nesse caso, a escrita da experiência clínica. Tais elementos, a saber, “a
modulação do tempo, os rituais, a efetivação de uma superfície de outros textos e o suporte
tecnológico a que se teve acesso para a escrita, habitam de forma nômade o espaço virtual de
elaboração do texto e de construção da autoria, tendo nesse espaço uma função constitutiva”
(p.150).
Se os dados desse estudo indicam as operações realizadas por um sujeito quando se
constitui como autor de um texto escrito, cabe perguntar como potencializar o exercício da
autoria no plano escolar, em seus primeiros anos? A desfonetização da escrita não consiste na
substituição de metodologias de ensino fonéticas, por outras não fonéticas. Implica mudanças
muito mais ecológicas que metodológicas. Cada vez mais, os professores tomam consciência
de que não existem métodos milagrosos, capazes de implantar mecanismos cognitivos em
alguém que não participa/interage em uma ecologia letrada. Existem grandes debates e
projetos educacionais em torno de um lema: “a motivação para a leitura”. Mas pergunto: se
boa parcela dos professores e das professoras de escolas públicas brasileiras são a própria
imagem da exclusão social das redes de escrita e de leitura (e não só dessas)9, então, como
esperar que “motivem” seus alunos à prática da leitura e da escrita? . O que permite a uma
criança que fale é o enlace que o adulto faz dela no universo das palavras, e ele só pode fazer
isso se tiver sido também aí enlaçado. É como se a criança precisasse ficar imersa nas letras,
acompanhada por adultos, também imersos, mas que por sua condição de adultos portam as
bússolas de seus desejos a partir das quais as crianças podem antecipar um norte para seus
percursos. Uma mudança ecológica reconfigura a própria forma pela qual os professores e
professoras são sujeitos da escrita ou a ela se assujeitam. Para além de meros administradores
de técnicas e de métodos de alfabetização, necessitariam sujeitar-se no mesmo estatuto de
leitor e de escritor que pretendem para seus alunos.
9 – – Smolka (1988) detectou a posição de iletrismo entre professores de escolas municipais, no interior do
Estado de São Paulo: “A professora não consegue aprender e representar a escrita como um objeto de estudo e de
conhecimento, nem consegue usá-la como mediadora ou instauradora de conhecimentos. (...) A escrita na escola
não serve para coisa alguma, senão para ela mesma”(p. 36/37).
Uma mudança ecológica permite a constituição de novas possibilidades de
subjetivação cognitiva, um reposicionamento profissional por parte dos educadores e a
construção de novos paradigmas de pesquisa.
No plano psicológico, para além de um sujeito decifrador ou codificador, pode-se
pensar no membro de uma comunidade de pensamento – alguém que pode significar-se como
participante de uma rede comunicativa escrita bem mais ampla do que aquela partilhada em
seu cotidiano espaço-temporal, possibilitando, assim, sua inserção em outra dimensão da
experiência simbólica humana
A desfonetização do ato de escrever reconfigura o significado da escrita e da leitura
como tecnologias intelectuais, para além de meras representações de idéias faladas e, após,
representadas por escrito. Ler e escrever são modos de construir idéias. A escrita é uma
atividade construtiva; não se escreve ou não se descreve algo antes do próprio trabalho da
escrita. A criação de um texto e a inserção no mundo da escrita ou nas redes de escrita podem
ser expressas através de um novo verbo: “intertextuar”10 Escrever significa “intertextuar”, na
medida em que um texto (e aqui estendemos a significação do dicionário) se constitui pelo
atravessamento de vários textos, estando o autor consciente ou não. Algumas vezes
conseguimos render o tributo da autoria, personalizando as citações, mas a maioria de nossa
escrita se processa com tamanha intertextualidade que parece impossível identificar a autoria
de todas as idéias. Há sempre uma cota de “plágio” na medida em que Outro fala em nós.
Intertextuar significa experimentar uma nova posição subjetiva frente à escrita. A
aventura de poder incursionar em diferentes territórios de conhecimentos e deles importar, e
contrabandear idéias, só é possível em uma ecologia suportada pela escrita. A riqueza desta
posição subjetiva está justamente na riqueza da própria intertextualidade: a flexibilidade no
arranjo de uma rede conceitual própria, através da interação com diferentes textos, diferentes
categorias e diferentes “escolas de pensamento”. Ler um texto, na perspectiva de inserção em
uma rede intertextual, não significa somente entender o sentido que o autor quis transmitir,
mas sim inserir este sentido dentro da historicidade das idéias, descobrindo as filiações
conceituais do autor, suas fontes de inspiração, a quem se endereça, a quem combate, o que
oculta ao escrever, etc. Escrever é, de alguma forma, inserir-se nessa rede intertextual,
posicionar-se como sujeito do conhecimento.
10 – A origem do novo verbo provém dos substantivos intertextualidade e intertexto. Segundo o Dicionário
Aurélio, intertextualidade teria como sentido: “1. Superposição de um texto a outro. 2. Na elaboração dum texto
literário, a absorção e a transformação de uma multiplicidade de outros textos.”
Mundos virtuais e o exercício de uma autoria coletiva
A capacidade codificadora e decodificadora, definida como alfabetização escolar, que
possibilita uma ajuda à memória, o acesso à informação cotidiana, desempenhou, desde a
época do início da universalização da escola, até bem recentemente, uma importante função
na sociedade. Isso se manteve, por um lado, pela crescente industrialização, que demandava
operários com alguns rudimentos de leitura e escrita mas, acima de tudo, operários
disciplinados (Enguita, 1989), o que era garantido pela própria processualidade da
alfabetização escolar (Cook-Gumperz, op. cit.). Por outro lado, a alfabetização se conservou
socialmente valorizada, pelo fato de não existirem vias massificadas e alternativas de acesso à
informação além da oral e da escrita. As novas tecnologias da comunicação e das informação,
desde o aparecimento da imprensa e, mais recentemente, do rádio e das máquinas de
processamento simbólico, vêm alterando esse estado de coisas, ao constituir modos
diferenciados de acesso à informação e à comunicação, principalmente àquela mais cotidiana.
Esses modos diferenciados de acesso põem em questão esse sentido estrito de alfabetização.
A influência dos meios de comunicação de massas e gradativa presença das máquinas
de manipulação simbólica, em nosso cotidiano, permitem apontar a constituição de uma nova
ecologia cognitiva. A estrutura da via informacional passa a conter acoplamentos com
sistemas de armazenamento e de tratamento da informação que ampliam as possibilidades dos
registros anteriores. As interações midiáticas possibilitam trocas à distância em tempo real,
propiciando o desenho de novas comunidades de interação (listas de discussão, chats,
trabalhos cooperativos, co-autoria para além da intertextualidade de uma ecologia escrita). As
transformações simbólicas propiciam a emergência de novas formas lógicas de raciocínio, tais
como as simulações, a lógica fractal, a realidade virtual que pode nos fazer co-autores de
mundos, sensações e não somente de idéias ou de pensamentos.
Cabe pensar a reconfiguração do exercício de autoria nesta ecologia. Don (1990)
aponta que pode ser interessante estabelecer uma espécie de relação entre o contador de
histórias de uma ecologia oral e um designer multimídia. A narrativa oral inclui a história
contada -conteúdo- e as condições dessa exposição - estrutura e contexto. Assim como o
contador que pode utilizar-se de vários modos de representação (inclusão de figuras, canções,
versos) um designer multimídia pode incluir múltiplos recursos para compor suas páginas,
tendo que trabalhar conjuntamente o conteúdo e a representação das estruturas de conteúdo,
tal como o narrador oral.
Mas acredito que o terreno mais fecundo e diferenciado de exercício de função da
autoria se dê justamente na possibilidade de uma autoria coletiva ou a co-autoria de textos,
ambientes, conhecimentos11.
11 A autoria coletiva nos mundos virtuais é o tema da orientada de mestrado Nílcia Mazzochi, 2000.
A possibilidade de constituição de ambientes interativos ricos em experiências de
autoria coletiva foi constatada a respeito de grupos de aprendizagem onde a interação se
sustentou por meio de correio eletrônico (Axt e Maraschin, 1999). Os resultados
possibilitaram evidenciar que na constituição de uma rede coletiva hipertextual, no espaço
virtual de uma lista de discussão, cada sujeito poderia ser considerado uma referência
instituinte deste espaço, ou seja, assumindo uma função de autoria a qual vai se desenhando
através dos textos produzidos. Estes textos constituem-se na forma de rede, interseccionando
entre si, na medida em que cada um remete, não apenas a um outro, mas a inúmeros outros,
num movimento aparentemente caótico porque simplesmente imprevisível. Diz-se que estes
movimentos que constróem textos são imprevisíveis, uma vez que as posições ocupadas pelos
sujeitos na assunção da função de autoria são as mais diversas, impossíveis de serem
determinadas, estando na dependência de inúmeros fatores, entre os quais poder-se-iam referir
as vivências dos sujeitos contingentes e particulares conduzidos a essas posições. Mas além
disso, pode-se dizer que estas posições de sujeito visibilizadas na função de autor são
também, em si, extremamente complexas, podendo ser pensadas, elas próprias, como devires
atualizáveis na forma de um nó rizomático, sempre de novo atravessadas por diversos fios de
sentidos. Em decorrência, diferentes posições de sujeito na assunção da autoria de
pensamento predispõem a trajetórias diferenciadas no interior do espaço virtual de um
hipertexto coletivo.
Apesar da participação escrita de cada sujeito ter sempre sua origem em posições de
autoria contingente particular, a escrita encontra-se reconfigurada a um complexo já
organizado como um sistema sócio-cognitivo que se organiza na própria intertextualidade.
Estes complexos organizacionais sócio-cognitivos, na medida em que constituem parte de
novos campos de subjetividade recortados segundo novos limites, estariam sujeitos a
instabilidades geradas pelos deslocamentos de sentidos na rede intertextual geradas pelas
transformações do próprio campo. Seria justamente este esforço reflexivo compensatório que
se apresentaria, simultânea e solidariamente, criativo e construtivo na invenção/produção de
novos possíveis caminhos, capazes de estabelecer a interlocução no plano sócio-cognitivo.
Diríamos que se instituem, neste campo de construção coletiva de conhecimentos, recortado
pela interação telemática, processos formativos que se atualizam através dos participantes,
sujeitos particulares e contingentes promovendo sua participação ativa (no sentido da autoria)
nessas novas redes sócio-culturais do conhecimento.
Experiências de autoria coletiva podem ser observadas em alguns sites, tanto inseridas
como propostas interativas dentro de cursos, quanto em experiências mais pontuais de escrita
coletiva. Tais como em Nevado, R (http://www.psico.ufrgs.br/mec/nte2); e Primo, Alex
(http://hipertramas.cjb.net/).
Existem outros modos interessantes de exercício de autoria coletiva no qual os
participantes de um mundo virtual se sentem co-autores de episódios que envolvem, além das
idéias, experiências sensório-motoras: onde a ação de um participante interfere nas condições
da experiência coletiva produzindo efeitos no próprio ambiente como também nos próprios
pontos de vistas. Kac, E. (http://www.ecak.org). Em ambientes virtuais a experimentação se
dá em termos sensórios e em muitos casos motores (com o uso de luvas, capacete, etc).
Quando o navegador pode alterar elementos deste mundo ele pode provocar diferenças nos
objetos e no próprio espaço virtual, que propiciem novas experimentações a futuros visitantes.
Desta forma poderia se falar em autoria, na medida em que uma diferença foi produzida e
novas possibilidades serão vivenciadas -corporalmente- a partir de então. Em realidade,
estamos nos primeiros passos dessas novas possibilidades de autoria coletiva. Acredito que
para além do debate de como ficam os direitos autorais, deveríamos mergulhar na criação e
experimentação disto que poderia acarretar interessantes efeitos de autoria ao se experimentar
a co-dependência de mundos a partir da afetação do outro, do diferente.
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